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Mini-conto - "A expressão da resposta"

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Mensagem por Rafael Valle Dom 24 Mar 2013, 23:19

A expressão da resposta

Aquele cenho retesado ativou algo familiar em minha alcoolizada memória, porém não desembrulhou nada em minha lembrança. A cútis de suas maçãs foi sutilmente tomada por um afogueamento que se estendia através da periferia de suas órbitas, continuava na direção de uma veia saliente da têmpora e seguia acima, até ocultar-se sob os longos fios negros que floresciam densamente de sua cabeça. Pode ser que naquele momento eu tivesse associado aquela expressão, de forma inconsciente, ao olhar reprovador que a balconista disparou contra mim no dia anterior, logo após eu esbarrar num suporte abarrotado de livros e revistas, os quais cederam à gravidade através de minha transposição intencionalmente atabalhoada. Ela nunca respondeu meu “bom dia”. Desvencilhei-me da lembrança da balconista e volvi minhas íris ao encontro dos olhos de minha acompanhante. O astigmatismo não me impediu de notar as pupilas invadindo quase todo o anil contido nos globos, já enrubescidos pelo drama e pela fadiga. Olhava-me de soslaio enquanto procurei desconversar. “Não te deixei dormir essa noite. Vê se relaxa e dorme”. Frente a minha resposta positiva, esse melindre já era imaginável. Sua persistência foi enfadonha. Mesmo prevendo que haveria uma má reação eu respondi, no intuito de calar o assunto. Após a confirmação do que ela nunca desconfiou, não importava dizer quem, onde ou quando. Ela continuaria estupefata, com certeza, ao passo em que a verdade é que eu não ligava. Ainda não ligo.

Sob o edredom odorizado pelo êxtase, deslizei levemente meu indicador em seu ombro. Fazendo-se entendida ante o meu sinal, apoiou-se sobre o cotovelo direito e levantou o corpo para que eu puxasse meu braço, já inanimado pela dormência. Assim, pude vislumbrar por alguns segundos, durante o levantar da cabeça, a totalidade daquele rosto que jazia com um terço afundado no travesseiro.

Eu queria fumar. Levantei-me, pus a ceroula e andei até a poltrona rústica, forrada de couro marrom, sobre a qual estava apoiado o maço quase vazio. O ar invernal que passava pela janela era nada convidativo, mas nela apoiei os cotovelos, sobre o mármore gélido, enquanto o vento alimentava a brasa do cigarro, assim como levava, junto a cinza e a fumaça, a minha sensação agradável de noite sem cama vazia. O calor compartilhado sobre o lençol seria mais conveniente, mas ali permaneci. Ela continuou petrificada enquanto eu a fitava, por cima de meu ombro esquerdo, aguardando o começo do inevitável. Após seu terceiro soluço abafado, comecei a circular pelo quarto e recolher meus pertences, um a um, como quem procura páginas arrancadas de um livro gerador de muita curiosidade. Olhei-a uma vez mais, caçando um trecho desnudo à mostra para admirar. Nada pronunciei ao sair, pois me antecipei imaginando como seria o prolongamento da cena se caso eu o fizesse. O fato de nunca ter havido promessas apoiava minha tentativa de justificativa mental. “Nunca dei falsas esperanças...”. Não que eu tramasse algo, mas talvez eu tenha apenas me feito de desentendido, de forma robótica. Automático. Apenas não fui questionado antes, pois se caso fosse, as possíveis juras poderiam ser explicitadas e, quiçá, ***pridas. Só se convivia e nada mais. Nada se perguntava. No início, pareceu-me conveniente continuar, mesmo percebendo que a expectativa criada por ela, implicitamente, era maior que a minha. Se assim ela soubesse desde o princípio, com certeza seria ela a cortar com tudo antes, enquanto era cedo, precavendo-se de sua própria decepção. Porém não pôde prever, assim como eu também não pude logo de início. Decerto não previ. Apenas, em algum momento antes dela, percebi e nada fiz. Procrastinei ao máximo, pois gostava de visitar aquela cama. Ainda gosto.

Rafael Valle - 20/03/13 - Facebook

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Meu texto para inaugurar-me no fórum (Copiado do fórum anterior)

A quem leu, obrigado.

Até então, esse texto compreende um mini-conto, mas ao meu ver tem possibilidades de ampliação. Estou curioso para saber se transmite a outras pessoas essa mesma sensação de continuidade, além de saber demais opiniões sobre esse meu "exercício".

Rafael Valle

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Mini-conto - "A expressão da resposta" Empty Re: Mini-conto - "A expressão da resposta"

Mensagem por joaofld Dom 07 Abr 2013, 16:08

Oi, Rafael.

Acho que a demora em obter uma resposta aqui seja algo que faça parte do próprio movimento da literatura. Como diz o texto do José Geraldo, a velocidade do movimento de quem cria é diferente da velocidade de quem lê. Mas, eu acrescento que quem lê para entender compartilha da mesma lentidão de quem cria. Essa enrolação toda é pra pedir desculpas pela demora em postar uma leitura do teu texto. Desculpas pedidas, eis o que eu penso.

A primeira coisa que eu perguntaria é: QUANDO NASCEU O TEU PERSONAGEM NARRADOR? De que ano é esse homem? Não que isso, verdadeiramente, importe, mas é que o uso de palavras que são parte do vocabulário de pessoas com mais de 60 anos e com, pelo menos, o nível superior completo me chamou atenção.

Mas, vou começar a partir disso: apesar da linguagem idosa, o teu personagem tem uma "cara" de jovem (pelo menos com menos de 40 anos). E o fato de ele usar essa linguagem dá a entender como esse sujeito está deslocado do espaço-tempo em que vive. Imagino que o conto se passe no tempo contemporâneo, pois nada dá indicação de ele ser de época. Descolamento, esse que fica claro quando ele se lembra do olhar de reprovação da balconista da livraria quando ele derrubou os livros.

Mas, essa linguagem dá outra dica sobre a personalidade dele: ele é um homem lento. Tão lento que usa uma linguagem antiga, de um outro tempo e de uma outra velocidade do viver, muito mais adequada a sua velocidade de vida. É um cara da contemplação. Portanto, entrar num relacionamento com uma pessoa que está (duplamente) à frente de seu tempo - tanto por ser mais rápida quanto por ser uma mulher do agora [a primeira parte a gente pode inferir do texto; a segunda eu estou afirmando por minha conta e risco, já que a mulher não fala nada, mas reage automaticamente ao perceber o que significa as atitudes do parceiro] - são impossíveis de se realizarem em sua mente. A ponto de ele, ao final, quando reflete sobre o "absurdo" da relação, dizer que Se assim ela soubesse desde o princípio, com certeza seria ela a cortar com tudo antes, enquanto era cedo, precavendo-se de sua própria decepção.

Ou seja, o cara ainda culpa a mulher pelas expectativas que ela criou com base no que OS DOIS viviam. É interessante isso, pois é como se ele tentasse dizer para si mesmo que não vivia uma relação válida por não ser uma relação em que Só se convivia e nada mais. Nada se perguntava. E, no entanto, é justamente nas relações em que se conversa, em que se estabelecem limites que as promessas silenciosas não precisam ser cumpridas.

Acho que podemos dizer que o cara viu a pergunta, mas não a respondeu. Ficou em silêncio. Então, a pergunta é: será que esse era um relacionamento em que nada se perguntava?

Bom, com relação a sua percepção de continuação, eu devo dizer que tenho um problema, pois quando o autor me informa que o texto pertence à determinado gênero, eu entro na conversa dele e crio estratégias de leitura que me permitam ler o que ele disse que o texto era. Portanto, pra mim, esse texto está completo. E por esse mesmo motivo, não consigo vislumbrar uma continuação desse texto.

Esse fora silencioso que o cara deu já diz muita coisa.

Abraço!
joaofld
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Mensagem por Rafael Valle Ter 23 Abr 2013, 14:45

Valeu pela leitura, João! Realmente não levei adiante a idéia de prosseguir mesmo. Ficará como está. rsrs

Rafael Valle

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