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A Decapitação dos Chefes - Italo Calvino

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A Decapitação dos Chefes - Italo Calvino Empty A Decapitação dos Chefes - Italo Calvino

Mensagem por joaofld Dom 24 Mar 2013, 19:02

Não sei se são acostumados a ler a obra de Italo Calvino (se não, façam, pois é um dos sujeitos que mais reflete sobre o fazer literário em suas obras literárias), pois gostaria de iniciar uma discussão sobre o conto A Decapitação dos Chefes, do livro Um General na Biblioteca e da "proposta" contida nele.

O conto é dividido em quatro partes. Na primeira, um sujeito recém chegado a um lugar não nomeado repara numa espécie de festividade que está sendo preparada. Esse sujeito conversa com várias pessoas num bar, perguntando a todos os que ali estão que tipo de festividade é essa. Sempre perguntando a um e recebendo resposta de um outro, depois de vários rodeios, ele descobre que o que acontecerá será a decapitação dos chefes. Da segunda parte em diante, temos um histórico e reflexões sobre como a vida política de tal localidade chegou a tal consenso na relação com seus políticos.

A tese básica é a de que o poder é algo que precisa ser vivido de forma intensa. Intensidade que só advém da certeza de que a morte está próxima. Os sujeitos governados acatam com melhor eficiência as ordens dos chefes, pois sabem que eles não ficarão no cargo para sempre. É um resumo muito tosco, mas que dá uma ideia de como a relação política dos personagens do conto se dá.

Mas, o que mais me chocou é o que está por trás dessa ideia. Não sei se me chocou por que intuitivamente eu já havia percebido ou se por que o momento em que vivo me leva a chocar-me com algumas coisas.

A ideia é esta: para se fazer algo com verdade é preciso sentir aquilo que se faz. Ou seja, no conto, os políticos/chefes são bons por que sentem o que são, forçados por uma morte que eles sabem ser inevitável. Há uma pressão para ser o que são.

Penso que essa pressão não é totalmente negativa, já que nem só a morte pode causá-la. Mas, foi em mim, um soco no estômago.

Infelizmente, eu não achei o conto na internet para que vocês lessem (acho que vou escaneá-lo), mas falem, vocês sentem essa pressão, positiva ou não? Vocês constroem o texto de vocês com uma verdade? (Me parece, inclusive que os "grandes textos" nascem dessa verdade. O que acham?

Abraços!
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Mensagem por joaofld Dom 24 Mar 2013, 19:03

Por Eduardo Jauch

Já ouvi falar bastante sobre o Ítalo Calvino, mas ainda não li nada sobre ele.
Vou tentar encontrar esse texto. Entretanto, se você puder digitalizá-lo (por garantias), não seria mau.

Sobre a questão da "verdade" escondida no texto...

Eu não vejo como "obrigatória", mas tudo que escrevo, se me parecer vazio de propósito, se não levar a algum tipo de reflexão, não me satisfaz. Nem um pouco.

Pode ser puro preconceito, mas é assim mesmo...

E não que eu CONSIGA dar algum sentido ao que escrevo, claro...
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Mensagem por joaofld Dom 24 Mar 2013, 19:03

Por Maurem Kayna

Tenho esse e-book e não tinha lido ainda. Li apenas esse conto especificamente. Encarei-o como uma alegoria ou crítica aos regimes totalitários que possivelmente afetaram em certa medida a própria vida do Calvino. A verdade que pode estar ali é um desejo de desforra do próprio...
Por outro lado... escracha que o desejo de poder é algo tão visceral que faz um sujeito aceitar até a morte como ônus inevitável. Vou tentar postar aqui o conto.

Do Calvino, o que mais me impressionou do pouco que já li foi o "Se um viajante..."
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Mensagem por joaofld Dom 24 Mar 2013, 19:04

Por Maurem Kayna

Eis o conto:

A DECAPITAÇÃO DOS CHEFES

1

No dia em que cheguei à capital devia ser a véspera de uma festa. Nas praças estavam construindo palanques, içando bandeiras, fitas, palmas. Ouviam-se marteladas por todo lado.
— A festa nacional? — perguntei ao homem do bar.
Ele apontou a fila dos retratos às suas costas. — Os nossos chefes — respondeu. — É a festa dos chefes.
Pensei que fosse uma proclamação dos novos eleitos. — Novos? — perguntei.
Entre as marteladas, os alto-falantes que eram testados, os chiados das gruas que levantavam catafalcos, eu devia, para me fazer entender, lançar frases breves, quase berrando.
O homem do bar fez um sinal negativo: não se tratava de novos chefes, já o eram havia algum tempo.
Perguntei:
— Aniversário de quando chegaram ao poder?
— Uma coisa assim — explicou um freguês ao meu lado. — Periodicamente, é o dia da festa, e é a vez deles.
— É a vez deles, de quê?
— De subir no palanque.
— Que palanque? Eu vi muitos, um em cada cruzamento.
— Cada um tem um palanque. Os nossos chefes são muitos.
— E o que fazem? Discursos?
— Não, discursos não.
— Sobem, e fazem o quê?
— O que quer que eles façam? Esperam um pouco, enquanto duram os preparativos, depois a cerimônia se encerra em dois minutos.
— E vocês?
— Olhamos.
No bar, era um entra e sai: carpinteiros, operários que descarregavam dos caminhões objetos para a decoração dos palanques — machados, toras, cestos — e paravam para tomar cerveja. Eu dirigia minhas perguntas a um e era sempre outro que respondia.
— É uma espécie de reeleição, em suma? Uma reconfirmação dos cargos, digamos, dos mandatos?
— Não, não — me corrigiram —, o senhor não entendeu! É o vencimento do prazo. O tempo deles acabou.
— E aí?
— E aí deixam de ser chefes, de estarem lá em cima: caem.
— E por que sobem nos palanques?
— Nos palanques a gente pode ver perfeitamente como o chefe cai, o pulo que dá, cortado de uma vez só, e como vai terminar na cesta.
Eu começava a entender, mas não tinha muita certeza. — A cabeça dos chefes, o senhor quer dizer? Na cesta?
Faziam sinal afirmativo. — É isso. A decapitação. Ela mesma. A decapitação dos chefes.
Havia pouco tempo que eu chegara ali, não sabia nada, não tinha lido nada nos jornais.
— Então, amanhã, de repente?
— Quando chega a hora, chega a hora — diziam. — Desta vez cai no meio da semana. Faz-se festa. Tudo fechado.
O velho acrescentou, sentencioso: — Quando a fruta está madura é colhida, o chefe é decapitado. O senhor deixaria as frutas apodrecerem nos galhos?
Os carpinteiros estavam com o trabalho bem adiantado: em certos palanques instalavam as armações das pesadas guilhotinas; em outros prendiam solidamente as toras para a degolação com a lâmina, encostadas em confortáveis genuflexórios (um dos ajudantes fazia o teste de se abaixar ali e pôr o pescoço em cima da tora, para testar se estava na altura certa); em outros lugares, enfim, aprontavam como que umas bancadas de açougueiro, com a ranhura para deixar o sangue escorrer. No soalho dos palanques estendiam um pano encerado, e já estavam preparadas as esponjas para limpá-lo dos respingos. Todos trabalhavam com entusiasmo; ouviam-se seus risos, assobios.
— Então, vocês estão contentes? Vocês os odiavam? Eram maus chefes?
— Não, quem disse isso? — olharam-se entre si, surpresos. — Bons. Em suma, nem melhores nem piores do que tantos outros. Bem, a gente sabe como eles são: chefes, dirigentes, comandantes... Se alguém chega a um desses postos...
— Mas — disse um deles — desses eu gostava.
— Eu também. Eu também — outros fizeram eco. — Nunca tive nada contra eles.
— E não ficam tristes quando os matam? — disse eu.
— O que fazer? Se alguém aceita ser chefe já sabe como acaba. Nunca pretenderá morrer na cama!
Os outros riram.
— Seria fácil! A pessoa dirige, dirige, depois, como se nada houvesse, para e volta para casa.
Um disse:
— Nesse caso, vou lhes dizer, todos quereriam ser chefes! Eu também, sabem, estaria disposto, olhem-me aqui!
— Eu também, eu também — disseram muitos, rindo.
— Eu, de jeito nenhum — disse um de óculos —, assim não: que sentido teria?
— É verdade. Que prazer haveria em ser chefe dessa maneira? — intervieram várias vozes. — Uma coisa é fazer esse trabalho sabendo o que nos espera, outra é... mas se não for assim, como seria possível fazê-lo?
O homem de óculos, que devia ser o mais culto, explicou:
— A autoridade sobre os outros é uma coisa que só existe junto com o direito que os outros têm de fazer você subir num palanque para ser morto, um dia não muito distante... Que autoridade teria um chefe se não vivesse cercado por essa expectativa? E se não a lêssemos nos olhos dele, essa expectativa, o tempo todo em que dura o seu mandato, segundo após segundo? As instituições civis repousam sobre esse duplo aspecto da autoridade; nunca se viu civilização que adotasse outro sistema.
— E no entanto — objetei — eu poderia lhe citar casos...
— Digo: verdadeira civilização — insistiu o homem de óculos —, não falo dos intervalos de barbárie que duraram mais ou menos longamente na história dos povos...
O velho sentencioso, que antes tinha falado das frutas nos galhos, resmungava alguma coisa para si mesmo. Exclamou: — O chefe comanda enquanto está amarrado ao seu pescoço.
— O que o senhor quer dizer? — perguntaram-lhe os outros. — Quer dizer que, se por hipótese, um chefe ultrapassa seu prazo, digamos, e não lhe cortam a cabeça, ele fica ali dirigindo, a vida toda?
— Assim eram as coisas — o velho assentiu — nos tempos em que não estava claro que quem escolhe ser chefe escolhe ser decapitado a curto prazo. Quem tinha o poder o guardava bem guardado...
Aqui eu poderia ter intervindo, citado exemplos, mas ninguém prestava atenção em mim.
— E então? Como faziam? — perguntavam ao velho.
— Deviam decapitar os chefes à força, contra a vontade deles! E não em datas estabelecidas, mas só quando realmente não aguentavam mais! Isso acontecia antes que as coisas estivessem combinadas, antes que os chefes aceitassem...
— Ah, gostaríamos de ver se eles não aceitassem! — disseram os outros. — Bem que gostaríamos de ver!
— As coisas não se passam assim como vocês dizem — interveio o homem de óculos. — Não é verdade que os chefes sejam obrigados a se submeter às execuções. Se dizemos isso perdemos o sentido verdadeiro dos nossos regulamentos, a verdadeira relação que liga os chefes ao resto da população. Só os chefes podem ser decapitados, por isso não se pode querer ser chefe sem querer ao mesmo tempo o corte do machado. Só quem sente essa vocação pode se tornar um chefe, só quem já se sente decapitado desde o primeiro momento em que se senta num posto de comando.
Pouco a pouco os fregueses do bar tinham se dispersado, cada um voltara para o seu trabalho. Percebi que o homem de óculos se dirigia só a mim.
— Isso é o poder — continuou —, essa espera. Toda a autoridade de que se usufrui é apenas o prenúncio da lâmina que assobia no ar, e se abate com um corte seco, todos os aplausos são apenas o início daquele aplauso final que acolhe a cabeça rolando pelo oleado do palanque.
Tirou os óculos para limpá-los com o lenço. Percebi que estava com os olhos rasos de lágrimas. Pagou a cerveja e foi embora.
O homem do bar se inclinou perto do meu ouvido.
— É um deles — disse. — Está vendo? — E pegou debaixo do balcão uma pilha de retratos. — Amanhã tenho de tirar os outros e pendurar estes aqui. — O retrato no alto era o do homem de óculos, uma ampliação ruim de uma fotografia de identidade. — Foi eleito para suceder aos que deixam o cargo. Amanhã assumirá suas funções. Agora é a vez dele. A meu ver fazem mal em dizer-lhe isso na véspera. Viu em que tom ele julga as coisas? Amanhã assistirá às execuções como se já fossem a sua. Todos fazem assim, nos primeiros dias; impressionam-se, exaltam-se, acreditam sabe-se lá em quê. A “vocação”: a palavra pomposa que ele desencavou!
— E depois?
— Cairá na realidade, como todos. Eles têm tantas coisas para fazer, não pensam mais nisso, até que chega o dia da festa, para eles também. Em suma: quem pode ler no coração dos chefes? Fingem não pensar nisso. Mais uma cerveja?

2

A televisão mudou muitas coisas. Antigamente, o poder ficava longe, figuras distantes, empertigadas em cima de um palanque, ou retratos numa atitude e com expressões de altivez convencional, símbolos de uma autoridade que dificilmente se conseguia atribuir a indivíduos de carne e osso. Agora, com a televisão, a presença física dos homens políticos é algo próximo e familiar; seus rostos, ampliados no vídeo, visitam cotidianamente as casas dos cidadãos privados; cada um de nós pode, acomodado tranquilamente em sua poltrona, relaxado, observar o menor movimento das feições, a vibração irritada das pálpebras diante da luz dos refletores, o nervoso lamber dos lábios entre uma palavra e outra... Especialmente nas convulsões da agonia, o rosto, já bem conhecido por ter sido enquadrado tantas vezes em ocasiões solenes ou festivas, em poses oratórias ou de parada, exprime tudo de si mesmo: é nesse momento, mais que em qualquer outro, que o simples cidadão sente o governante como seu, como algo que lhe pertence para sempre. Mas já antes, durante todos os meses anteriores, sempre que ele o via aparecer na telinha e avançar na realização de suas tarefas — por exemplo, inaugurando escavações arqueológicas, espetando medalhas no peito dos merecedores, ou apenas descendo escadinhas de aviões e acenando a mão aberta —, já estudava nesse rosto as possíveis contrações dolorosas, tentava imaginar os espasmos que precederiam o rigor mortis, distinguir na pronunciação dos discursos e brindes as inflexões que caracterizariam o estertor extremo. Nisso consiste justamente a ascendência do homem público sobre a massa: ele é o homem que terá uma morte pública, o homem a cuja morte temos certeza de assistir, todos juntos, e que por isso é cercado em vida de nosso interesse ansioso, antecipador. Já não conseguimos imaginar como eram as coisas antes, no tempo em que os homens públicos morriam escondidos; hoje achamos graça ao ouvir que eles chamavam de democracia certas regras daquela época; para nós a democracia só começa a partir do momento em que temos certeza de que, no dia estabelecido, as câmeras de televisão enquadrarão a agonia de nossa classe dirigente, de forma cabal, e de que, no fim do mesmo programa (mas nesse momento muitos telespectadores desligam o aparelho), haverá a posse da nova equipe, que ficará no cargo (e em vida) por período equivalente. Sabemos que também em outras épocas o mecanismo do poder se baseava em assassinatos, em hecatombes ora lentas ora imprevistas, mas os assassinados eram, salvo raras exceções, pessoas obscuras, subalternas, mal identificáveis; volta e meia os massacres eram silenciados, oficialmente ignorados ou justificados com motivos enganosos. Só essa conquista agora definitiva, só a unificação dos papéis de carrasco e vítima, num rodízio contínuo, permitiu extinguir dos espíritos todo resquício de ódio e piedade. O close-up na tensão dos maxilares escancarados, a carótida saltada que se debate dentro do colarinho engomado, a mão que se levanta contraída e rasga o peito cintilante de condecorações são contemplados por milhões de espectadores com sereno recolhimento, como quem observa os movimentos dos corpos celestes em sua repetição cíclica, espetáculo que, quanto mais estranho, mais nos tranquiliza.

3

Mas, afinal, vocês não querem nos matar desde já?
Essa frase, pronunciada por Virghilij Ossipovitch com um leve tremor que contrastava com o tom quase protocolar, embora carregado dos ásperos acentos polêmicos em que se desenvolvera a discussão até o momento, quebrou a tensão na assembleia do movimento “Volja i Raviopravie”. Virghilij era o mais jovem membro do comitê diretor; um leve buço escurecia seu lábio proeminente; cachos de cabelos louros caíam sobre seus olhos cinzas e amendoados; aquelas mãos de articulações avermelhadas, cujos pulsos saíam sempre de mangas curtas demais, não haviam tremido ao armarem a bomba debaixo da carruagem do czar.
Os militantes de base ocupavam todos os lugares ao redor, na sala baixa e enfumaçada do subsolo; a maior parte deles, sentados em bancos e tamboretes, alguns de cócoras no chão, outros em pé, de braços cruzados, encostados nas paredes. O comitê diretor ficava instalado no meio, oito rapazes curvados em volta da mesa abarrotada de papéis, como um grupo de colegas de escola fazendo um esforço concentrado antes dos exames de fim de ano. Às interrupções dos militantes, que choviam em cima deles dos quatro cantos da sala, respondiam sem se virar e sem levantar a cabeça. De vez em quando, uma onda de protestos ou aprovações subia da assembleia e — já que muitos se levantavam e davam um passo à frente — parecia convergir das paredes para a mesa, submergindo as costas do comitê diretor.
Liborij Serapionovitch, o secretário hirsuto, várias vezes já havia proferido a máxima lapidar a que se recorria frequentemente para acalmar as divergências irredutíveis: “Se o companheiro se separa do companheiro, o inimigo se une com o inimigo”, e a assembleia retrucara escandindo em coro: “A cabeça que está na cabeça até mais além da vitória cairá no dia seguinte, vitoriosa e honrada”, admoestação ritual que os militantes do “Volja i Raviopravie” não deixavam de endereçar a seus dirigentes toda vez que lhe dirigiam a palavra, e que os próprios dirigentes trocavam entre si como expressão de saudação.
O movimento lutava para instaurar, sobre as ruínas da autocracia e da Duma, uma sociedade igualitária em que o poder fosse regulado pelo assassinato periódico dos chefes eletivos. A disciplina do movimento, tão mais necessária na medida em que a polícia imperial exacerbava a repressão, exigia que todos os militantes fossem obrigados a seguir sem discussão as decisões do comitê diretor; ao mesmo tempo, a teoria recordava em todos os seus textos que cada função de comando só era admissível se exercida por quem já tivesse renunciado a gozar dos privilégios do poder e virtualmente não pudesse mais ser incluído entre os vivos.
Os jovens chefes do movimento nunca pensavam na sorte que lhes reservava um futuro ainda utópico: por ora, era a repressão czarista que promovia a renovação dos quadros, infelizmente cada vez mais rápida; o perigo das detenções e das forcas era demasiado real e cotidiano para que as conjecturas da teoria tomassem forma nas fantasias deles. Um ar juvenilmente irônico, desdenhoso, servia para remover de suas consciências o que, afinal, era o aspecto que sobressaía na doutrina deles. Os militantes de base sabiam de tudo isso e, assim como compartilhavam com os membros do comitê diretor riscos e necessidades, assim também compreendiam o espírito deles; e no entanto conservavam o significado obscuro desse destino de justiceiros, a ser exercido não só sobre os poderes constituídos mas também sobre os poderes futuros. Não podendo expressá-lo de outra maneira, ostentavam nas assembleias uma atitude insolente, que, mesmo se limitando a um modo formal de comportamento, não deixava de pairar sobre os chefes como uma ameaça.
— Enquanto o inimigo a enfrentar for o czar — dissera Virghilij Ossipovitch —, é louco quem procura o czar no seu companheiro — afirmação talvez inoportuna, e sem dúvida mal recebida pela assembleia ruidosa.
Virghilij sentiu a mão de alguém apertando a sua; sentada no chão, a seus pés, estava Evguenija Ephraïmovna, os joelhos encolhidos debaixo da saia pregueada, os cabelos presos na nuca e caindo dos dois lados do rosto como os fios de um novelo fulvo. Uma das mãos de Evguenija subira pelas botas de Virghilij até encontrar a mão do jovem, de punho cerrado, roçara seu dorso numa carícia de consolo e depois cravara suas unhas pontudas, arranhando-o lentamente até sair sangue. Virghilij compreendeu que, naquele dia, circulava pela assembleia uma determinação obstinada e precisa, algo que dizia respeito diretamente a eles, os dirigentes, e que se revelaria dali a pouco.
— Nenhum de nós jamais esquece, companheiros — interveio para acalmar os ânimos Ignatij Apollonovitch, o mais antigo do comitê e considerado o espírito mais conciliador —, aquilo que não deve esquecer... Seja como for, é justo que vocês nos recordem isso, de vez em quando... se bem que — acrescentou, debochando com sua barba — o conde Galitzin e os cascos de seus cavalos já pensem suficientemente em nos recordar... — Fazia alusão ao comandante da guarda imperial que, com uma carga de cavalaria, tinha recentemente destroçado um de seus cortejos de protesto, na ponte do Picadeiro.
Uma voz, sabe-se lá de onde, o interrompeu:
— Idealista! — e Ignatij Apollonovitch perdeu o fio. — E por quê? — perguntou, desconcertado.
— Acha que basta guardar na memória as palavras da nossa doutrina? — disse, do outro canto da sala, um magricela que se fizera notar entre os mais agitados dos últimos convocados. — Sabe por que a nossa doutrina não pode ser confundida com as de todos os outros movimentos?
— Claro que sabemos. Porque é a única doutrina que, quando tiver conquistado o poder, não poderá ser corrompida pelo poder! — resmungou, inclinada sobre os papéis, a cabeça raspada de Femja, que entre eles era o chamado “ideólogo”.
— E por que esperar, para pô-la em prática — insistiu o magricela —, o dia em que tivermos conquistado o poder, meus pombinhos?
— Agora! Aqui! — ouviu-se gritar de vários cantos. As irmãs Marianzev, chamadas “as três Marias”, adiantaram-se entre os bancos gorjeando “Pardon! Pardon!” e se atrapalhando com suas tranças compridas. Carregavam toalhas, dobradas nos braços, cantarolando e empurrando os jovens, como se fossem pôr a mesa para refrescos na varanda da casa delas em Izmailovo.
— O que nossa doutrina tem de diferente — o magricela continuava sua pregação — é que só se pode escrever na pessoa física dos nossos amados dirigentes com o corte de uma lâmina afiada!
Houve uns movimentos e quedas de bancos porque muitos da assembleia tinham se levantado e ido para a frente. As que mais empurravam e levantavam a voz eram as mulheres: — Sentados, meus irmãozinhos! Queremos ver! Que prepotência, mãe do céu! Daqui não se vê rigorosamente nada! — e metiam, entre as costas dos homens, seus rostos de professorinhas, cujos cabelos curtos debaixo das boinas com viseira conferiam-lhes um ar resoluto.
Só uma coisa podia abalar a coragem de Virghilij, e era um sinal qualquer de hostilidade vindo de uma mulher. Levantou-se, chupando o sangue das unhadas de Evguenija no dorso de sua mão, e, mal lhe saíra da boca a frase: “Mas, afinal, vocês não querem nos matar desde já?”, a porta se abriu e entrou o cortejo de aventais brancos empurrando os carrinhos carregados de ferros cirúrgicos cintilantes. A partir daí algo mudou na atitude da assembleia. Começaram a chover frases, copiosamente: “Mas não... quem falou em matá-los?... vocês, os nossos dirigentes... com o afeto que temos por vocês e tudo mais... que faremos sem vocês?... o caminho ainda é longo... estaremos sempre aqui perto de vocês...”, e o magricela, as moças, todos os que antes pareciam formar a oposição se desdobravam em esforços para encorajar os chefes, num tom tranquilizador, quase protetor. “É uma coisinha à toa, leve, de grande significado mas nada grave em si mesma, ai ai ai, um pouco dolorosa, é verdade, mas é para que vocês possam ser reconhecidos como os verdadeiros chefes, nossos chefes bem-amados, é só isso, quando for feita estará feita, uma pequena mutilação de vez em quando, vocês não vão se zangar conosco por tão pouco? É isso que distingue os chefes do nosso movimento, o que mais poderia ser, senão?”
Os membros do comitê diretor já estavam imobilizados por dezenas de braços fortes. Em cima da mesa iam sendo postas as gazes, as bacias com o algodão, as facas de serrinha. O cheiro de éter impregnava o ambiente. As moças arrumavam rapidamente, diligentes, como se desde muito tempo cada uma delas tivesse se preparado para sua tarefa.
— Agora, o doutor lhes explicará tudo direitinho. Ande, Tòlja!
Anatòl Spiridionivitch, que abandonara o curso de medicina ao ser reprovado, avançou, mantendo levantadas sobre o estômago já obeso as mãos com luvas de borracha vermelha. Era um sujeito estranho, Tòlja, que talvez para mascarar a timidez se apresentava com uma careta cômica e infantil e uma série de gracejos.
— A mão... Ei, a mãozinha... a mão é um órgão preênsil... ah, ah... muito útil... por isso temos duas... e os dedos, geralmente, são dez... cada dedo se compõe de três segmentos ósseos chamados falanges... pelo menos, nos nossos países são chamados assim... falange, falanginha, falangeta...
— Pare! Você está nos aborrecendo! Não venha nos dar uma aula! — a assembleia protestava. (No fundo, ninguém achava simpático esse Tòlja.) — Vamos aos fatos! Ande! Comecemos!
Primeiro trouxeram Virghilij. Quando compreendeu que iam lhe amputar só a primeira falange do anular, encheu-se de coragem e suportou a dor com uma altivez digna de si. Outros, ao contrário, gritaram; precisava-se de muita gente para segurá-los; felizmente, a certa altura a maioria desmaiava. Dependendo da pessoa, as amputações eram de dedos diferentes, mas em geral não mais que duas falanges para os dirigentes mais importantes (as outras iriam ser cortadas em seguida, uma de cada vez; convém saber que essas cerimônias iriam se repetir muitas vezes nos anos seguintes). Eles perdiam mais sangue do que o previsto; as moças enxugavam com cuidado.
Os dedos amputados, enfileirados sobre a toalha, pareciam pequenos peixes trucidados pela isca e atirados na praia. Ressecavam e enegreciam depressa e, depois de uma rápida discussão sobre a oportunidade de conservá-los num estojo, foram jogados no lixo.
O método da podadura dos chefes foi um sucesso. Com um dano físico relativamente modesto obtinham-se resultados morais de relevo. A ascendência dos chefes crescia com as mutilações periódicas. Quando a mão dos dedos decepados se levantava nas barricadas, os manifestantes faziam bloco, e os ulanos a cavalo não conseguiam dispersar a multidão aos berros que os esmagava. Os cantos, os barulhos surdos, os relinchos, os gritos “Volja i Raviopravie!”, “Morte ao czar!”, “A cabeça cairá no dia seguinte, vitoriosa e honrada!” corriam pelo ar gelado, sobrevoavam a fortaleza de Pedro e Paulo, eram ouvidos até nas celas mais profundas onde os companheiros presos batiam em cadência as correntes e estendiam seus cotos pelas grades.

4

Os jovens dirigentes, toda vez que esticavam a mão para assinar um documento ou sublinhar com um gesto seco uma frase num relatório, viam diante de seus olhos os dedos decepados, e isso tinha uma eficácia mnemônica imediata, estabelecendo a associação de ideias entre o órgão do comando e o tempo que se encurtava. Além do mais, era um sistema prático: as amputações podiam ser executadas por simples estudantes e enfermeiros, em salas de cirurgia improvisadas, com um equipamento precário; se descobertos e presos pela polícia, que vivia atrás deles, as penas previstas por uma simples mutilação eram leves, ou, de qualquer maneira, sem comparação com as que lhes seriam imputadas caso seguissem literalmente as prescrições da teoria. Ainda eram os tempos em que o assassinato puro e simples dos chefes não seria compreendido nem pelas autoridades nem pela opinião pública; os executores seriam condenados como assassinos, o motivo seria procurado em alguma rivalidade ou vingança.
Em cada organização local e em cada instância do movimento, um grupo de militantes, diferente do grupo dirigente, e cujos membros mudavam continuamente, se encarregava das amputações; fixava os prazos, as partes do corpo, a compra dos antissépticos e, valendo-se do conselho de alguns especialistas, metia a mão na massa, pessoalmente. Era uma espécie de comissão de mediadores, que não influía nas decisões políticas, rigidamente centralizadas pelo comitê diretor.
Quando começaram a faltar dedos de chefes, estudou-se o modo de introduzir algumas variantes anatômicas. Primeiro, foi a língua que chamou a atenção; não só se prestava às ablações sucessivas de pequenas fatias ou fibras, mas, como valor simbólico e mnemônico, era o que havia de mais indicado: cada cortezinho incidia diretamente na fala e nas virtudes oratórias. Mas as dificuldades técnicas inerentes à delicadeza do órgão eram superiores ao previsto. Depois de uma primeira série de intervenções, as línguas foram deixadas de lado, e eles se concentraram em mutilações mais vistosas embora menos comprometedoras: orelhas, nariz, alguns dentes. (Quanto ao corte dos testículos, mesmo sem excluí-lo de vez, foi quase sempre evitado, pois se prestava a alusões sexuais.)
O caminho é longo. A hora da revolução ainda não soou. Os dirigentes do movimento continuam a se submeter ao bisturi. Quando chegarão ao poder? Por mais tarde que seja, serão os primeiros chefes que não frustrarão as esperanças depositadas neles. Já os vemos desfilarem pelas ruas embandeiradas no dia da posse: avançando com a perna de pau quem ainda tiver uma perna inteira; ou empurrando a carriola com um braço quem ainda tiver um braço para empurrá-la, os rostos encobertos por máscaras de plumas para esconder as escarificações mais repugnantes, alguns arvorando seu próprio escalpo como uma relíquia. Nesse momento ficará claro que só naquele mínimo de carne que lhes resta poderá encarnar-se o poder, se ainda for preciso existir um poder.


Última edição por joaofld em Seg 25 Mar 2013, 11:44, editado 1 vez(es)
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A Decapitação dos Chefes - Italo Calvino Empty Re: A Decapitação dos Chefes - Italo Calvino

Mensagem por joaofld Dom 24 Mar 2013, 19:05

Por Eduardo Jauch

Obrigado por colocar aqui o Conto, Maurem. Lerei no fim de semana Very Happy
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Mensagem por Maurem Kayna Dom 24 Mar 2013, 20:26

Ainda falando de Calvino, estou participando de um curso online onde estamos discutindo o conto que dá título ao livro de onde o "decapitação..."foi extraído.
O general na biblioteca é um conto curtinho muito muito interessante. Que impressão tiveste dele, João?
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Mensagem por joaofld Dom 24 Mar 2013, 20:44

Maurem, vamos fazer o seguinte: eu vou abrir um novo tópico para o conto do General.
Eu acho que eles valem discussões separadas. Que tal?

Esse aqui ainda não esgotou tudo o que eu queria discutir. Very Happy
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Mensagem por Maurem Kayna Dom 24 Mar 2013, 21:01

Sim, tens razão! Very Happy
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Mensagem por Jauch Dom 31 Mar 2013, 16:17

Ainda não li o conto... Sad
Mas vou fazer uma forcinha para ler essa semana.
Desculpa, pessoal. Ando atolado em trabalho. lol
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Mensagem por Maurem Kayna Qua 10 Abr 2013, 22:37

Estou avançando na leitura do livro com um todo... mas estaquei com um tão nonsense que resolvi tomar um fôlego. O regimento perdido... mas vou ainda esperar mais comentários sobre esse aqui.
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Mensagem por joaofld Dom 14 Abr 2013, 19:53

Hoje, resolvi reler o conto e estabelecer alguns raciocínios sobre. Nessa primeira parte, falo da primeira parte do conto (que foi até onde reli). Cada vez mais, a impressão que o conto me dá é de que os chefes são alguma outra coisa. Mais do que uma crítica política, ela me parece uma crítica religiosa. Vou apresentando minhas reflexões junto aos trechos do texto. Minhas impressões:

1 - Eu dirigia minhas perguntas a um e era sempre outro que respondia.

A partir desse trecho a ideia de não comprometimento se fixou na minha mente. No ritmo que o conto tem, parece que cada um responde uma pergunta de outro como para livra aquele e a si mesmo da responsabilidade do que está para acontecer. A responsabilidade é dos chefes; são eles que aceitaram estar onde estão e tem que pagar o preço do lugar que alcançaram.

2 - Quando chega a hora, chega a hora - diziam.

Lembrando um pouco Borges, as pessoas afirmam que há uma hora para cada coisa. Não há aleatoriedade no mundo. Não se sabe como, quando ou porquê, apenas que a hora é a hora.

3 - O velho acrescentou, sentencioso: — Quando a fruta está madura é colhida, o chefe é decapitado. O senhor deixaria as frutas apodrecerem nos galhos?

E por trás dessa assertiva sobre o momento, há a ideia de as coisas boas carregam em si um travo de fatalidade, como se a morte estivesse por trás de cada novo movimento. O que é a colheita de uma fruta se não a sua condenação à morte?

4 - Todos trabalhavam com entusiasmo; ouviam-se seus risos, assobios.

Parece que os trabalhadores demonstravam a alegria de ter alguém que assume a responsabilidade em seu lugar. Tal como Jesus, os chefes os eximem de fazer a mesma coisa. É como se tivéssemos o espaço do conto dividido em dois planos: um, da responsabilidade, o outro, o da ausência dessa responsabilidade. Acho que é preciso frisar que essa responsabilidade é algo bem maior. Me parece ser quase a afirmação da ausência de responsabilidade pelo mundo, como o ritual judaico da época bíblica, em que durante um período do ano se afirmava que um carneiro detinha todos os pecados e que todo o povoado escorraçava o pobre do bicho para o deserto, à pedradas e pauladas, para purificar a alma dos humanos impuros que o agrediam.

5 - — O que fazer? Se alguém aceita ser chefe já sabe como acaba. Nunca pretenderá morrer na cama!
Os outros riram.
— Seria fácil! A pessoa dirige, dirige, depois, como se nada houvesse, para e volta para casa.


É preciso assumir a responsabilidade de se querer o que se quer. Dentro do conto, isso me parece uma armadilha do patriarcado; uma espécie de maldição de cargo passada de geração a geração. Sabem aquela vingança em quem é mais fraco? Eu apanho de um sujeito mais forte, mas me vingo num sujeito mais fraco que eu. Uma espécie de bola de neve que cresce a cada dia, mas que ninguém quer tentar parar por medo de assumir a responsabilidade pelas consequências imprevistas de tal tentativa. É como se se afirmasse que a sociedade que o conto descreve é uma máquina desgovernada, mas que ninguém aceita reconhecer tal desgoverno, como se isso pudesse de alguma forma evitar que a maquina faça o estrago que ela já está fazendo, por que ninguém a para.

6 - — Nesse caso, vou lhes dizer, todos quereriam ser chefes! Eu também, sabem, estaria disposto, olhem-me aqui!

E ainda dentro da armadilha, ser chefe não é algo que todos devam querer: afinal, como o grande pai poderia manter seu poder e reinado de bondade e felicidade, se todos os outros quisessem tomar o seu lugar?; ser chefe é o encontro com uma verdade (A VERDADE) inabalável, algo que não é para todos = compreender a ausência de lógica do mundo e não poder fazer nada para mudar. Posso citar a peça Calígula, do Albert Camus, em que toda a tragédia é desencadeada pela compreensão da total ausência de sentido do mundo pelo Calígula e pela sua incapacidade de suportar tal verdade.

7 - — Eu, de jeito nenhum — disse um de óculos —, assim não: que sentido teria?
— É verdade. Que prazer haveria em ser chefe dessa maneira? — intervieram várias vozes. — Uma coisa é fazer esse trabalho sabendo o que nos espera, outra é... mas se não for assim, como seria possível fazê-lo?
O homem de óculos, que devia ser o mais culto, explicou:
— A autoridade sobre os outros é uma coisa que só existe junto com o direito que os outros têm de fazer você subir num palanque para ser morto, um dia não muito distante... Que autoridade teria um chefe se não vivesse cercado por essa expectativa? E se não a lêssemos nos olhos dele, essa expectativa, o tempo todo em que dura o seu mandato, segundo após segundo? As instituições civis repousam sobre esse duplo aspecto da autoridade; nunca se viu civilização que adotasse outro sistema.
— E no entanto — objetei — eu poderia lhe citar casos...
— Digo: verdadeira civilização — insistiu o homem de óculos —, não falo dos intervalos de barbárie que duraram mais ou menos longamente na história dos povos...


Não é preciso um sentido, mas uma aparência de sentido. É a essa aparência que nos apegamos para viver. Esse deslocamento do "Digo: verdadeira civilização" é tão comum hoje e tão fácil de ser destruído, que eu me espanto a corda bamba em que nós andamos.

8 - — Assim eram as coisas — o velho assentiu — nos tempos em que não estava claro que quem escolhe ser chefe escolhe ser decapitado a curto prazo. Quem tinha o poder o guardava bem guardado...

É como se as incertezas que rondam o nascimento das "verdades" tornassem as coisas verdadeiras. Não saber exatamente como uma coisa começou é um atributo de sua veracidade.

9 - — As coisas não se passam assim como vocês dizem — interveio o homem de óculos. — Não é verdade que os chefes sejam obrigados a se submeter às execuções. Se dizemos isso perdemos o sentido verdadeiro dos nossos regulamentos, a verdadeira relação que liga os chefes ao resto da população. Só os chefes podem ser decapitados, por isso não se pode querer ser chefe sem querer ao mesmo tempo o corte do machado. Só quem sente essa vocação pode se tornar um chefe, só quem já se sente decapitado desde o primeiro momento em que se senta num posto de comando.

Pelo discurso do sujeito de óculos, percebemos o nascimento de uma mitologia própria da decapitação. Se não há uma verdade explicita, uma verdade esotérica pode dar sustentação. É como se afirmasse que o chefe é um suicida que não quer assumir a culpa pelo ato que quer cometer e o delega a uma predisposição quase divida. Afinal, o que é a vocação se não algo que uma divindade definiu que seria a missão de um sujeito na Terra?

10 - — Isso é o poder — continuou —, essa espera. Toda a autoridade de que se usufrui é apenas o prenúncio da lâmina que assobia no ar, e se abate com um corte seco, todos os aplausos são apenas o início daquele aplauso final que acolhe a cabeça rolando pelo oleado do palanque.

O poder dos chefes é o poder do condenado à morte. Como se cada ordem emitida pelos chefes fosse o último pedido de um condenado. Como negar o pedido de um condenado?

11 - — É um deles — disse. — Está vendo? — E pegou debaixo do balcão uma pilha de retratos. — Amanhã tenho de tirar os outros e pendurar estes aqui. — O retrato no alto era o do homem de óculos, uma ampliação ruim de uma fotografia de identidade. — Foi eleito para suceder aos que deixam o cargo. Amanhã assumirá suas funções. Agora é a vez dele. A meu ver fazem mal em dizer-lhe isso na véspera. Viu em que tom ele julga as coisas? Amanhã assistirá às execuções como se já fossem a sua. Todos fazem assim, nos primeiros dias; impressionam-se, exaltam-se, acreditam sabe-se lá em quê. A “vocação”: a palavra pomposa que ele desencavou!

Quase que como um rodízio de profetas e deuses descartáveis.

12 - — Cairá na realidade, como todos. Eles têm tantas coisas para fazer, não pensam mais nisso, até que chega o dia da festa, para eles também. Em suma: quem pode ler no coração dos chefes? Fingem não pensar nisso. Mais uma cerveja?

Ao longo da minha leitura, foi ficando cada vez mais forte a impressão de que esse trecho e a crucificação de Jesus tem uma relação. A banalidade com o que o cara do bar oferece uma cerveja, depois de afirmar que todos os chefes agem da mesma forma, me lembra muito a nossa banalidade perante a morte de um Deus. Sem entrar em fatores religiosos, mas me espanta muito (e depois do conto, mais ainda) a banalidade da relação dos cristãos com esse momento tão grande de sua mitologia. Sempre foi uma relação banal, mesquinha; a mesma felicidade dos trabalhadores da cidade do conto, em saber que não serão eles que morrerão. Como assim, um deus morre por nós e o máximo que fazemos é uma peça de teatro (aqui de forma pejorativa de uma encenação) de forma tão mecânica e asséptica em que os significados dessa morte não são transmitidos. É como se fosse preciso uma iniciação para tal. Só os escolhidos conseguem realizar a manutenção dos sentidos nos mundo, mas nem todos serão os escolhidos (biblicamente falando).

E aí, gente? Agora, depois de viajar, o que me dizem? E aí, chefe? O que vocês têm a dizer sobre A Decapitação dos Chefes?

Abraços!
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Mensagem por Maurem Kayna Dom 14 Abr 2013, 20:03

João, acho impossível dissecar apenas uma parte do conto. Quer dizer... possível é, mas (e posso pecar, porque não o reli) se você soma toda essa sensação da primeira parte ao que vem nas partes seguintes, talvez se acrescente algo mais... que é a distorção que se instaura e assume ares de natural, e talvez inevitável, em cada sociedade humana... o surgimento dessa tradição de decaptar os chefes começou com outros ares, no partido, antes de uma possível ou suposta revolução (e não pude evitar certa comparação com o clima da revolução dos bichos naquela parte do conto em que uma assembléia é descrita, quando começaram as primeiras "marcas" aos "chefes"). É como se a decaptação fosse fruto também de uma distorção que foi se tornando natural, mas que não o era a princípio. E que exprime uma certa maldade gratuíta ou inevitável do homem. Não fui tão aproundada e menos ainda ordenada nas minhas reflexões.. soltei assim de chofre... mas vou rever as tuas impressões com calma e com o livro ao lado...
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Mensagem por joaofld Seg 15 Abr 2013, 09:52

Mauren, nem eu acho possível dissecar o conto aos pedaços. O que estou fazendo é anotando as minhas impressões no progresso da leitura. Farei isso com as outras partes, também.

É como se a decapitação fosse fruto também de uma distorção que foi se tornando natural, mas que não o era a princípio.

Concordo. A distorção é o empurrar a responsabilidade para o outro, mesmo que contra a sua vontade.

Toda distorção na área humana é fruto da má compreensão ou má interpretação dos acontecimentos. Citando o conto que você citou que te paralisou pelo absurdo da situação, O Regimento Desaparecido, o final dele, lembra muito o início da decapitação dos chefes. Ao final do conto, o regimento reage ao espaço em que se encontra como se fossem reféns em áreas inimigas. Mas, o que os levou a isso? O seu micro repertório de reações. Um militar sempre vai reagir como um militar, assim como o povo sempre vai reagir como o povo.

O nosso problema é não perceber o que significam essas coisas que fazemos. As pessoas não sabem porque degolam os chefes, elas só sabem que é necessário. Elas agem intuitivamente. Nós ficamos sabendo o motivo de tal ritual, mas os sujeitos que o praticam apenas afirmam que as coisas têm que ser assim. Ms, as coisas tem que ser assim?

Ainda essa semana, vou reler a segunda parte, aquela em que o cara do bar assiste a decapitação pela tv.

Abraço!

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Mensagem por Jauch Ter 16 Abr 2013, 13:56

Bom, vou imprimir o texto para ler, porque no computador já não vai... rs
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